10/12/2010

No céu colorido

Não sou,
nem quero ser,
explosão súbita
desse fogo-de-artifício
que surge fugazmente
e que se remete,
estrondosamente,
de novo ao anonimato.

Lá longe, na floresta,
sou antes fogueira acesa,
que crepita, brandamente,
em coro com o vento.

Sou aurora boreal,
que, certa da sua beleza,
surge, calmamente,
numa noite ao relento.

Natal

Chega, mais uma vez,
O Natal.
Abri, pois, as portas
Aos que vêm de longe!
Abri as portadas,
Para que possais observar
O Presépio do Céu,
Representado pelas Estrelas!

Abri as janelas!
Partilhai o cheiro
Das rabanadas,
E da aletria,
E da lareira acesa
Com quem passa!

Partilhai o bacalhau,
E as prendas,
E as decorações!
Abri os vossos corações!
Dai o Calor
Dos braços abertos,

E recebereis
A Vida Maior.

09/11/2010

Destino

Se algures no infinito,
encontrarem uma folha branca
com o meu nome escrito,
e um traçado de ruas,
encantos e desencontros;

E, se ao a contemplar,
encontrarem todos os pontos
em que chorei, sorri e ri;
Mesmo que vos pareça
que foi assim que vivi,

E que vos venha à mente
a palavra "destino",
isolada, realizada,
pintada pelo pincel
mais divino,

Recordem que muito
mais sou do que
um mero mapa.

E mesmo que toda a vida
esteja já delineada;
Mesmo que a escolha
pareça já estar tomada,
Sou eu quem a sente concretizar-se.

Porque muito mais é a vida
do que ponto de chegada
ou de partida.

É sentir o vento na cara
e, por dentro, uma forte batida.

24/09/2010

Chamem-lhe saudades

Nó na garganta.
Nó e vazio.
Um tremer da mão.
No estômago, frio.
Um ir e vir
De vontades.

O coração envolto
Numa corda.
Numa corda apertada.
Nó na garganta,
Frio no estômago,
Corda lentamente puxada.

Vontade de vomitar.
Vontade de correr,
De sair.
Vontade de ficar.
Vontade de fugir.
Vontade de abraçar.

Sei perfeitamente
O que lhe chamar,
A este ir e vir
De vontades.
Como se importasse,
Como se algo mudasse,

Chamar-lhe saudades.

Água benta

  Água benta: o que é? Para alguns, talvez represente um ritual; uma tradição; um acto executado, sim, mas não inteiramente compreendido. Por outro lado, também há aqueles que a vêem quase como um arcaísmo, algo em que não se pensa, seja por discordância, seja por mero desinteresse.
  Ainda existe, contudo, a versão mais "tradicional", mantida e defendida por aqueles para quem Deus e a Natureza se entrelaçam num: água benta é, afinal, purificação. Talvez algo mais, mas nunca nada menos do que virtude, pureza, integridade.
  Meditando sobre estas palavras, que, ligeiras, carregam muito mais do que consoantes, vogais e sílabas, encontro-as levemente bordadas na alma desse líquido transparente - benzido, ou não - que nos escorre pelos dedos, sem, no entanto, o vermos, prova viva duma fragilidade aparente, duma força esmagadora que, por vezes, se dissimula num silêncio cómodo.
  Água benta, água bendita, água abençoada - adjectivos que emprego não como distinção entre várias qualidades de água, mas sim como uma verdade imutável, que exerce toda a sua veracidade sobre toda e qualquer gota, solitária na sua existência indivisível, forte na sua pequena vulnerabilidade irreal.
  Afinal, seja a água que limpa a nódoa, que arrefece o corpo quente, ou que refresca a boca seca, toda ela é benta. Qual de nós não chega a casa, depois de uma boa corrida, toma imediatamente um copo de água e se sente verdadeiramente grato por esta existir? Qual de nós, sentindo-se nervoso ou preocupado, não molha os pés na água salgada e se sente embalado pelo ruge-ruge das ondas? Qual de nós consegue conceber um futuro sem esta fonte de tanta vida?
  E, mesmo assim, quantos de nós a desperdiçam superficialmente, todos os dias?

Porque me fazes acreditar

Porque me fazes acreditar.

Fazes-me acreditar
Na Luz do dia,
E no nascer do Sol,
E numa nova Alegria
Que talvez traduziria
Nesse teu olhar.

Fazes-me acreditar
Em respirar,
E sonhar,
E viver,
E amar,
E... respirar.

Mais do que meditar,
Fazes-me acreditar
No que os olhos não vêem,
Na continuidade
Dos que não a têm,
Na força do mar.

Fazes-me acreditar
Em querer, e imaginar,
E trabalhar, e viajar,
E lutar, e chegar.

Fazes-me acreditar
Que, um dia,
Irás voltar.

02/09/2010

Estrada Vazia

Caminhando sozinho

na escuridão nocturna;
sentindo o sopro frio
na face soturna,
deixar-te-ias mudar?

Porque o vento
contrabalança
a expressão sombria.

Porque o vento
traz esperança,
não a surripia.
Caminhando sozinho
pelo negrume frio,
forçarias o pesar ou
deixar-te-ias mudar?

Perfeição Utópica

  Recordo vivamente o meu professor de Educação Visual sentado à secretária, a acrescentar cores, linhas e sombras aos nossos trabalhos supostamente terminados. Entretanto, dizia: “para um artista, a obra nunca está acabada”.


  Na minha opinião, ele não podia estar mais certo. Seja qual for o artista e seja qual for a sua obra, há sempre algo a acrescentar, alterar, refazer… essencialmente, a aperfeiçoar. E, na verdade, não é o Homem um artista, cujo trabalho vital reside não na moda, nem na tecnologia, nem tão pouco na economia ou na política, mas sim em si mesmo?

  A nossa vida é um constante ajustamento e, acima de tudo, amadurecimento de ideias, sentimentos, comportamentos e princípios. Apesar de não ser sempre no sentido mais correcto, o nosso crescimento é permanente e inevitavelmente contínuo. É um trabalho perpétuo. Assim, com cada nova experiência, compreendemos e, mais, sentimos algo anteriormente inatingível. De tal forma que, quando observamos as nossas acções passadas, encontramos sempre actos que gostaríamos de mudar. Contudo, foram esses erros, por vezes, embaraçosos, juntamente com outras experiências mais felizes, que nos fizeram a pessoa que hoje somos e, se não nos podemos orgulhar de nós próprios, de que nos podemos orgulhar?

  Então, se a nossa vida é um perpétuo aperfeiçoamento, qual é o objectivo? Sabemos bem que perfeição não rima com Homem. Poderemos nós estar a desperdiçar o nosso tempo a correr em direcção a uma meta inalcançável? A uma utopia?

  Penso que não. Não chamo a esta perfeição, mas dou-lhe sim o nome de Deus. Para mim, Ele é o único portador de uma perfeição quente, luminosa e feliz, ao contrário daquela que os homens, por vezes, procuram e idealizam. Assim, diria que o objectivo é “procurar as coisas do Alto” (Cl 3, 1-4), agir por Deus e em Deus, não para nos salvarmos a nós próprios, mas sim para construirmos o Amor e melhorarmos o mundo.



Felizes os que se arrependem perante o Senhor! “Felizes os que cumprem os seus preceitos e O procuram com todo o coração”! (Sl 119, 2)

17/07/2010

Natureza

Natureza.
Porque Beleza.
Porque Leveza.
Porque Clareza.
Natureza.

Natureza.
Tronco, Flor.
Raiz, Flor.
Erva, Amor.
Natureza.

Natureza.
Porque Fortaleza.
Natureza.

Natureza.
Irregularidade, Perfeição.
Força, Suavidade.
Conformada à Evolução.
Natureza.

Natureza.
Porque Independência.
Porque Clarividência.
Porque Existência.
Natureza.

Natureza.
Grande.
Maior.
Imensa.
Natureza.

Natureza.
Porque Vida.
Porque Natureza.

Sonho

Se o meu sonho
sonhado fosse,
sonhado seria.
Porém, belo sonho
achá-lo já não poderia.

Isto, porque
se o meu sonho
sonhado fosse,
já não seria
doce sonho,
alegre fantasia,

mas incerta
alegoria.

01/07/2010

Festejar pelo prazer de festejar

Chegou o S. Pedro. Os bairros vestem-se com as respectivas cores e as ruas, decoradas a preceito, enchem-se de fogueiras, de garagens abertas ao povo e de pessoas. Sobretudo de pessoas.

Chegou o S. Pedro. Só as palavras “S. Pedro”, para nós, poveiros, têm um significado inexprimível, demasiado abrangente para qualquer dicionário. Para os estudantes, muitas vezes trazem um travo a Verão e liberdade, pois anda de mãos dadas com o fim das aulas. Para os mais bairristas, o mais imediato são as rusgas e a competição (quase) saudável. Para uns, a procissão é o evento mais marcante. Para outros, o que importa é a festa pela noite dentro.

Mas todos nós concordamos em como a festa poveira apresenta uma característica indispensável: o convívio. Isto, porque S. Pedro não é S. Pedro sem um bom passeio pelas ruas da nossa Póvoa, contando com umas quantas paragens aqui e acolá, para partilhar uma sardinha bem assada e uma malga quente de caldo verde. Isto, porque S. Pedro não é S. Pedro sem um abraço dado a um velho amigo e um sorriso oferecido a um estranho. Isto, porque S. Pedro não é S. Pedro sem a humilde gente poveira unida e, assim, reforçada, pronta a exclamar uma saudação aos conterrâneos e um “bem-vindo seja!” aos que vêm de fora.

De certa forma, o S. Pedro é um segredo poveiro. Não é possível entendê-lo sem experimentá-lo, aqui, com os nossos conterrâneos. E, assim que o vivemos, não o conseguimos transmitir, porque não encontramos palavras. Porque, o que quer que dissermos, ficará aquém do que sabemos bem ser o S. Pedro. É daquelas experiências simples que não se podem verbalizar, que não se podem trocar… Que fazem tudo o resto valer a pena.

O S. Pedro é isto: toda a Póvoa achegada para festejar. Festejar o quê? Nem nós sabemos. Talvez o nosso padroeiro, talvez as nossas tricanas, talvez a nossa terra… Não importa. É um festejar sem motivo, sem razão, sem objectivo. É um festejar pelo prazer de festejar. É ser simples e acolhedor. É ser feliz. É ser poveiro.

Afinal, sempre é bom viver aqui – quando é S. Pedro.
:)

Renascer

Mais do que no Mundo, penso na terra; mais do que na Humanidade, atento na pessoa.


Em todas e cada uma vejo Amor. Sinto-o e quero eternizá-lo, guardá-lo perpetuamente. Quero construí-lo, gesto por gesto, para que não possa ser levado pelos ventos, pelas ondas, pelas tempestades. Para que todos – e cada um – possamos olhar para ele, quando nos apetecer, e sorrir. E senti-lo a nascer em nós.

Quero o Teu Reino na Terra. Quero o Teu Reino em mim.

Que outra palavra senão:

                                                         conversão

                                                                                       ?

Para a nossa professora (de português) preferida!

Um poema que, a pedido da minha turma, escrevi para a nossa professora de português. É baseado na Proposição d'Os Lusíadas.
Obrigada, stôra Bininha, por tudo! :)


As lições e as aulas dadas
Pela incrível stôra lusitana,
Sobre as matérias nunca dantes estudadas,
Por entre os versos da Obra Camoniana,
Em leituras e explicações esforçadas
Mais do que prometia a força humana,
Ensinou à malta distraída
Mais do que sobre a matéria, sobre a própria vida;

E também as memórias gloriosas
Destes anos que foram passando,
Ocasiões essenciais e preciosas
Que fomos agasalhando,
Experiências valiosas
Que, de quando em vez, vamos lembrando:
Cantando espalharemos por todo lado,
Se a tanto nos ajuda o grande talento apresentado.

Saudades profundas vamos sentir
Das lições de português “aborrecidas”,
Dos berros que a stôra nos fazia ouvir,
Do engrandecimento que trouxeram às nossas vidas.
Relembraremos o que nos fez exigir
De nós próprios, das nossas mentes “entretidas”.
Agradecemos as horas connosco dissipadas,
E despedimo-nos com ternura e amizade partilhadas.

Antecipação

No silêncio,


Pneus sob o alcatrão;

Pés sob o passeio,

Na noite.



O Rio,

O Mar,

O Vento,

O que importa?



Na antecipação,

Tudo perde o esplendor

Em contraste contigo.



Por fim, a tua voz chega e passa.

Volta o teu silêncio.

Cria-se a memória.

08/05/2010

Numa folha quase abandonada

Uma folha em branco,
pousada sobre a mesa,
como que abandonada.

Que lástima!

Que a folha receba, acolha as lágrimas.
E, mesmo depois delas secarem,
se deixe ficar sulcada pela sua memória,
guardando uma dor que nunca foi minha.

Que lástima!

Que a folha não guarde a felicidade.
Que apenas banhada pelo sol,
semi-translúcida,
se deixe atravessar pelo sorriso bondoso.

Que lástima!

Que, depois da luz, depois do sorriso,
depois da alegria e da felicidade,
só fique o branco.
O branco da paz.

Então, meu amigo, se vires a folha
pousada, quase abandonada, sobre a mesa,
não acredites no que vêem os teus olhos.

Pois a alegria foi grande, enorme,
universal.
E não coube na folha branca.

E, assim, o sorriso foi também
grande, enorme, universal,
para abarcar tamanha alegria.

Ou, talvez, fosse uma gota de água,
que, apesar de simples e pequena,
é indestrutível.
Ou, antes, mutável.
Que, apesar de simples e pequena,
é mundo, é vida, é tudo.
Talvez.

Por isso, meu amigo, se vires a folha
pousada, quase abandonada, sobre a mesa,
vê, com o teu coração, o branco que ficou,
depois de, iluminada pela luz do sol,
eu a ter usado
para ver, do outro lado,
o sorriso que é teu.

03/03/2010

Sorrisos ao Sol

Que alegria!

Observar
Dois amigos
A fazer Música,
A fazer Poesia.

Perdidos em sorrisos
Doces, ligeiros,
Sentidos.

Longe das excessivas
Gargalhadas,
Tantas vezes fingidas,
E forçadas,
E esquecidas.

E eu ali,
A observar
O Sol,
Que vinha banhar,
Sem convite,
Os momentos felizes.

E eu ali,
E começava já
A minha Alma
A Cantar,
A Sonhar.
A Amar.

A fazer com eles
Música,
Poesia

Mas que grande alegria!

Falhas

Se corresses pelas rochas, saltarias as falhas, como eu?

Mesmo que cada salto te magoasse o pé, ou a cabeça, ou o coração?
Mesmo que o risco de te perderes na falha se tornasse mais pesado ao longo do percurso?
Mesmo que a falha nunca desaparecesse totalmente do teu coração?

Saltarias as falhas, de qualquer das formas, ou ignorá-las-ias, só para te voltares a deparar com elas mais tarde?
Ou podias ainda regressar, esquecer aquela rocha, partir em busca de uma mais perfeita, mais fácil de percorrer.

Mas não saberias, como eu sei, que o maior salto é o mais feliz.
Que a maior falha pode tanto magoar-te, como trazer-te a maior das alegrias.

(Acontece o mesmo com as pessoas, as suas falhas, e o Amor)

27/02/10

Poeta Sem Palavras

Gostaria de dizer
Que sou poeta
Sem palavras.

Que sou como ave
Que voa
Por sobrevivência,
Por instinto.

Mas mentiria.

Mentiria,
Porque conheço bem
O prazer secreto
Do bico da caneta,
Escorregando pelo azul
Da tinta,
A descrever as curvas
Do a, do g, do s.

A traçar os tês
E a pôr os pontos
Nos is.

E a minha mão,
Que corre com a caneta!
E a caneta,
Que parece já
Conhecer o caminho!

Como se as palavras
Já estivessem impressas,
E eu fosse apenas
Colori-las.

E a minha boca,
Que, no silêncio nocturno
Da sala escura,
Vai procurando sentido
Na torrente de palavras!

E a minha alma,
Que sabe sempre
O sentido!

Mentiria,
Porque conheço demasiado bem
O prazer culpado
De querer escrever
Só mais uma palavra,
Só mais uma letra,
Só mais uma vírgula,

Apenas para saborear
A tinta no papel.

27/02/10

A Casa Assombrada

Rosa e Rui mergulhavam profundamente nas antigas memórias da avó, todas concentradas no sótão. Era dia de Natal e, tanto as suas mães, como o tio deles e ambos os seus filhos, iriam passar e celebrar aquela sobejamente importante tradição com a avó Júlia. O seu marido, o avô deles, tinha morrido há cinco anos e, claro, não podiam deixar a avó sozinha no Natal. Seria extremamente incorrecto e rude.


- Ouve isto, Rosa: “Para matar vampiros, use estacas de madeira, enquanto, para lobisomens, são preferíveis balas de prata. Já os fantasmas, só morrem com sal grosso.”. Não sabia que a avó gostava destas coisas. Bem, acho que ela sempre foi um pouco excêntrica.

- Esse livro não é da avó. Foi o avô que o comprou, apenas por divertimento. Ele queria ver a cara da avó, quando lhe mostrasse o livro. – Ao ver a cara curiosa de Rui, Rosa acrescentou – A avó contou-me essa história o mês passado, no Dia dos Mortos. Queria que eu conhecesse “o lado engraçado e, às vezes, incrivelmente inconveniente” do avô, tal como ela o pôs.

Mas Rui já tinha dirigido a sua atenção para uma caixa cheia de conchas, búzios e afins, rotulada com “1993”. Aparentemente, o conto que estava por detrás daquela caixa era bastante apelativo, pelo menos para Rui. Rosa já tinha encontrado outros objectos interessantes. Percorria, com o olhar, a estante de livros, como que à procura de um específico.

- Rui – disse ela sorrindo – descobri o livro de contos do avô. – Porém, o seu olhar voltou atrás e deteve-se num outro livro. Este tinha uma lombada de cor marfim e letras gravadas em dourado, que soletravam: “A casa assombrada”. Rosa achou aquele livro atraente e pensou que Rui, sempre disposto ao terror, iria adorar. Pegou nele com cuidado e o rapaz não tardou a descobrir que aquele não era o livro esperado.

- Que livro é esse? Parece muito estranho. Acho que não devíamos abri-lo.

- Porquê? Vá lá. Vê, chama-se “A casa assombrada”. Tu sempre adoraste estas coisas.

- Não sei, não gosto do seu aspecto e tenho um mau pressentimento.

- Podíamos só dar uma vista de olhos, e, se não gostarmos, fechamo-lo e pomo-lo de lado.

- Pronto, está bem. Mas, fica sabendo, só o faço porque sou demasiado curioso.

Rosa abriu o livro e, antes que pudesse agir, o livro sugou-os, com tal força, que foi impossível eles resistirem.

- Rosa! Onde estás?

- Rui! Ajuda-me!

Foram pousados num soalho que rangeu, para seu grande susto. Ambos caíram com um estrondo ensurdecedor e bastante longe um do outro. Rosa levantou-se depressa e foi ao encontro de Rui, que também já se tinha levantado.

- Onde estamos? – perguntou Rosa, assustada.

- Não sei. Vês? Tudo por causa da tua ideia maluca! “Vá lá! Tu sempre adoraste estas coisas.” – replicou Rui, com uma voz muito acusadora.

- Desculpa! Nunca pensei que isto pudesse acontecer. – desculpou-se a rapariga, à beira das lágrimas.

- Perdoa-me também. Não foi culpa tua. E, por favor, não chores! Precisamos de nos manter alerta, temos de descobrir onde estamos.

- Não é óbvio? – explicou Rosa, subitamente recomposta – Estamos na casa assombrada do livro.

- Ah! Agora já sabes tudo outra vez, não é? – ripostou o rapaz, irritado – Mas, desta vez, és capaz de ter razão.

Repentinamente, começaram a ouvir barulho de passos e apareceu-lhes uma figura peluda, castanha e volumosa à frente.

- Oh! Sejam bem-vindos à Casa Assombrada! Mansão, melhor dizendo! Eu sou o Duque do Susto. Em que posso ajudar carne fresquinha e… quero dizer, jovens, como vocês?

- Nós queríamos saber – respondeu Rui, chegando-se à frente, enquanto Rosa tremia compulsivamente – como podemos sair desta mansão, e voltarmos ao sótão da nossa avó.

- Oh! Mas isso é deveras fácil. Têm de sair pela porta principal, claro. – respondeu o Duque, com um tom de superioridade – Se assim desejarem, eu acompanhar-vos-ei.

Os primos aceitaram e o recém-chegado levou-os, então, através de escadarias e mais escadarias. Por fim, Rosa falou, exausta:

- Desculpe, falta muito para chegarmos à porta principal?

- Bem, eu avisei-vos que isto era uma mansão. Demoramos, sempre, imenso tempo para…

- “Demoramos”? Quer dizer que mais pessoas habitam aqui? – cortou Rui, assustado com a ideia, pois, no caminho todo, não tinham visto, sequer, um rato.

- Com certeza! O menino não pensava que eu, Duque do Susto, morava nesta mansão, totalmente sozinho, pois não? O que sucede é que os outros monstros estão no salão principal, a jantar. Vocês apanharam-me numa ida à casa-de-banho.

- Que tipo de “outros monstros” vivem aqui? – interrogou Rosa, aterrorizada com essa possibilidade.

- Moram aqui todo o tipo de almas perdidas imagináveis. Somos apenas simples criaturas rejeitadas pelo resto do mundo. – acrescentou o lobisomem, vendo o olhar dos primos - Podemos ser horríveis, mas penso que ainda possuímos, pelo menos a maioria, um coração.

Os dois primos experimentaram, no exacto momento em que aquelas palavras saíam da boca do Duque, um sentimento de compaixão e pena. Como é que poderiam ter pensado mal, e chegado, mesmo, a sentir nojo daquelas criaturas? Como é que poderiam tê-las julgado, sem tê-las, sequer, conhecido?

- Ah! Tinha-me esquecido que, no caminho para a porta, passaríamos pelo salão. Querem jantar?

- Nós gostaríamos muito, mas as nossas mães devem estar à nossa espera. – desculpavam-se os dois, em coro.

- As vossas mães nem notaram a vossa falta. O tempo, aqui na mansão, não passa. É um privilégio que nós não possuímos, tal como tantos outros. – reparando no olhar desacreditado que os primos trocavam, o Duque sugeriu – Olhem para os vossos relógios, se não acreditam.

Ambos os adolescentes, olhando para os relógios, constataram que o ponteiro dos segundos, de facto, não se mexia. Rosa já havia reparado naquele acontecimento antes, mas tinha achado que o relógio se tinha estragado, com a queda.

- Então, decidem-se a ficar, ou preferem seguir? – questionou-os o lobisomem, parando subitamente e fazendo com que, por pouco mais de um centímetro, Rosa e Rui não chocassem com uma parede.

Tinham de tomar uma decisão, porém, ambas as opções tinham argumentos fiáveis. Poderiam escolher ir-se embora, desapontando o Duque, mas evitando as outras criaturas, ou poderiam ficar, enfrentá-las e, quem sabe, comer ratos ao jantar.

- Teríamos todo o prazer em ficar – apressou-se Rosa a responder, num tom decidido.

Entraram no salão, aparentemente calmos e prontos para o que iriam ver. Todavia, a surpresa foi algo agradável. É verdade que aquelas criaturas eram horríveis e facilmente desprezáveis, porém, comportavam-se civilizadamente, como se fossem pessoas. Comportavam-se, até, melhor do que os primos de Rosa e Rui. E o seu jantar era perfeitamente saudável, equilibrado e, pela pequena parte que os primos experimentaram, saboroso. Nesse momento, eles aperceberam-se que nunca se devem julgar as pessoas pela sua aparência, ou neste caso, as criaturas, porque no fundo, todos têm sentimentos.

Durante a incrivelmente enriquecedora refeição, o Duque contou-lhes que costumava comer pessoas, mas, na mansão, tinha entrado numa espécie de reabilitação, e, desde que ali pusera os pés, só comia legumes, fruta e verduras.

- Nada de carne! Sabem, ainda estou no primeiro ano do programa. Quero, também, pedir-vos desculpas pelo meu áspero comentário, quando aqui chegaram. Foi um lapso momentâneo, mas vai acrescentar-me três meses ao programa.

No fim do jantar, Rosa e Rui foram acompanhados por uma série de criaturas, que haviam conhecido durante a refeição, dando, assim, um merecido descanso ao Duque do Susto. Quando, finalmente, chegaram à porta principal, exaustos, mas satisfeitos com a lição, custou-lhes imenso despedir-se dos novos amigos. Por isso, decidiram criar uma nova tradição: todos os anos, no dia de Natal, seriam novamente sugados para o livro e passariam o tempo que quisessem na mansão.

Assim que se encontraram novamente, no sótão da avó, notaram que os relógios tinham começado a trabalhar e que não se sentiam nada cheios. Na verdade as suas barrigas contorciam-se de fome. Mas, o mais impressionante de tudo, o livro tinha desaparecido e parecia que tinham acabado de acordar de um sono de dez horas! Nessa altura, os primos esqueceram a fome e interrogaram-se mutuamente. Ambos recordavam os mesmos eventos e, em especial a lição que tinham aprendido. Mas teria aquilo sido um sonho conjunto ou teria acontecido realmente? Aí, ambas as mães chamaram-nos com tal persistência, que Rosa e Rui não tiveram outro remédio senão descer. Acordaram que jamais contariam o sucedido a alguém. Desceram, ambos esfomeados, e puseram a cara mais normal que conseguiram. Desde então, partilham um segredo que todos desconhecem e criaram um laço muito especial.

 
30/11/09

Palavras

As palavras
não me servem
de nada!

Quero sentir
as Cores em mim,
sem as rotular.
Quero sentir
o Silêncio em mim,
sem o quebrar.
Quero sentir
a Música em mim,
sem a falar.
Quero sentir
a Vida em mim,
sem a explicar;

sem a traduzir
para a imperfeição (lacónica)
das palavras.
E lá vou eu
outra vez,
a comprimir sentimentos
no espaço pequenino
de um poema.
1/02/10

13/02/2010

Os teus cabelos são uma só nuvem. Uma nuvem onde os sonhos se formam. Nela me deito, espero, adormeço. E no sonho que tenho em ti encontro a minha verdade. O meu sonho é a verdade.


O teu sorriso é o Céu. À primeira vista, não desvendo a sua insondável grandeza. Até que, brilhando de esperança, surgem timidamente as estrelas e, nem na escuridão mais densa, elas deixam de reluzir. E estrelado fica o meu sonho.

As tuas faces rosadas são dois botões de flor, pequenos e simples. São a pureza, são a fragilidade. São a beleza da imperfeição e da fraqueza da nossa espécie. São o que nos torna humanos.

E teus olhos! ... Existe, neste Universo, algo que tenha comparação possível com os teus olhos, para além dele próprio? Essas doces íris, que contêm o recanto mais sombrio – onde as Trevas de nada valem contra a Luz em ti acesa – e a majestosa planície – onde o Sol se espreguiça, inocente, aquecendo e iluminando todas as almas.

Contudo, como poderia eu sonhar com qualquer aspecto do teu semblante, sem antes reconhecer o teu bondoso coração? O teu apoio, o teu centro de gravidade, a maior dádiva que podias oferecer ao mundo. A verdade do meu sonho.

12/02/2010

Muros

Sento-me aqui,
rodeada de planícies e planaltos,
de montes verdejantes,
repletos de frutuosas árvores.

Sento-me aqui,
rodeada de céus abertos,
de ventos livres,
que correm como crianças, felizes.

Sento-me aqui,
rodeada por estes muros,
que fui construindo
sem me aperceber.

Estes muros,
que pintei com cores esbatidas,
para serem parecidos comigo,
mas que não são eu.

Estes muros,
que são parecidos comigo,
mas que não são EU.

Estes muros,
que complicam o espaço da minha alma,
quando o que quero é a simplicidade.
Quando o que preciso é
simplicidade.

Estes muros,
que não me deixam espaço para plantar
as minhas árvores;
que não me deixam espaço para
correr livre atrás dos ventos.

Estes muros,
que me impedem de ser
EU!

E sento-me aqui,
sabendo que, num dia próximo,
eles ruirão, de dentro para fora.

Sabendo que
nem uma só pedra deixará cicatriz
e que os muros serão
ultrapassados,
esquecidos,
apagados.

Sabendo que,
nesse dia, serei já
planície, planalto, monte verdejante,
estendendo-me para o Céu.